30: dois rapazes nas margens do rio do tempo
Rui Caria
Num livro a que continuo a voltar, Albert Camus escreve: ‘Yet a time comes when a man notices or says that he is thirty. Thus he asserts his youth. But simultaneously he situates himself in relation to time. He takes his place in it. He admits that he stands at a certain point on a curve that he acknowledges having to travel to its end’. Parece que chegou a minha altura.
Sento-me nas margens do rio dourado do tempo, a observar o seu percurso implacável debaixo das constelações de buracos negros com as suas aurelas de luz. À minha direita, no futuro, erguem-se ondas que me fazem promessas com reflexos de imagens que não consigo decifrar e me ameaçam ao cobrirem o horizonte. À minha esquerda, no passado, vejo a espuma da memória que sobra da rebentação, enchendo o ar com o cheiro da infância e da adolescência. Ainda sinto nos ouvidos o zumbido de algumas dessas ondas, depois de me terem rebentado em cima.
Uma parte de mim, que me diz que não vou conseguir fazer esta tarefa sozinho, chama por outra parte de mim, que guardava secretamente a esperança de aqui se sentar comigo. Rompe triunfalmente as águas brilhantes do passado, salpicando-me com restos de sensações familiares. Olha à volta como se tudo fosse dele, e de certa maneira, é. Apesar de ele não o saber, só sentir. Mas era isso que o fazia especial. Venceu a corrente e nadou até mim. Por um momento, custou-lhe acreditar, mas também superou essa estranheza. Sempre gostou de acreditar em coisas que não existem. Percebeu o que estava a acontecer neste lugar que é só nosso.
‘Foda-se, continuo bonito.’ Disse-me o meu eu de dezasseis anos.
‘Sempre foste.’ Respondi-lhe eu com trinta.
Abraçámo-nos como os irmãos que nunca tivemos, e como os amigos que fizeram com que nunca nos fizessem falta. Olhar para a minha cara de menino foi como olhar para um espelho estragado. A familiaridade estava lá, mas faltavam os pormenores que o pincel da idade viria acrescentar. Um esboço do que viria a ser.
‘Então, que idade é que tens?’ Perguntou-me ele, tão entusiasmado que quase se esquecia daquilo que estávamos a fazer.
‘Hoje faço trinta.’ Respondi-lhe.
‘Trinta? Não! Não posso! Isso é daqui a 14 anos!’
‘Ya, e tu já foste há 14 anos. Vais lá chegar, puto.’
Riu-se e sentou-se ao meu lado. Olhávamos para o mesmo rio, mas não víamos a mesma paisagem. Havia tanto futuro dele que já era meu passado. Ainda não lhe era possível ver a espuma, só as paredes de água contra o horizonte. As que ele via, pareciam tão mais altas do que as minhas. A incerteza dele era maior, pois tinha mais futuro diante de si. Fiquei surpreendido com a bondade para comigo mesmo que me implorava que lhe aliviasse o fardo da incerteza. Apesar de nada disto existir e ser real apenas para nós os dois.
‘O que é que queres saber?’ Perguntei-lhe.
‘Isso pergunto-te eu! Tu é que me chamaste!’
‘Esperto do caralho…’
‘Devias saber isso… Mas se me chamaste é porque há alguma coisa que não sabes.’
‘Por aí, puto.’
Dos confins dos buracos negros, um vento supernatural soprou sobre as águas douradas. Era um espetáculo digno de se ver, mas ambos tínhamos os olhos baixos na relva branca aos nossos pés.
‘Fizemos merda?’ Perguntou-me ele depois de pensar mais nisto.
‘Não! Quer dizer… alguma. Bastante, na verdade. Mas não é por isso que estamos aqui.’
‘Então? Porque é que me chamaste? Não que eu te pudesse chamar a ti, isso é impossível.’
Ri-me da ironia de chamar algo de impossível no sítio onde estávamos. Mas ele tinha razão. Havia uma profunda injustiça nesta situação: eu podia chamar o passado, mas ele não podia chamar o futuro.
‘Decidi que é importante para mim refletir sobre o que foi antes de continuar em direção ao que vai ser. Preciso deste momento à parte do tempo para ganhar a perspetiva que preciso. Achei que não havia ninguém que me pudesse ajudar nisso tanto como tu.’
‘Mas tu já sabes tudo o que eu sei.’
‘Isso é verdade.’ Pensei um pouco sobre o que queria com isto. ‘Mas neste lugar as coisas funcionam de maneira diferente. Não vou aprender o que quero a fazer-te perguntas, mas a dar-te respostas. Ou, pelo menos, é isso que sinto.’
‘Então a perspetiva que precisas de recuperar… é a minha?’
‘Parece que sim, puto.’
‘Porquê? Para além de saberes tudo o que eu sei, sabes mais do que eu.’
‘Não tem que ver com o que tu sabes, mas com o que sentes. Posso saber mais do que tu, mas tu sentes mais do que eu. Ou, pelo menos, sentes de uma maneira que eu, talvez, já não seja capaz de sentir. Por isso podes dizer-me como te sentes em relação ao que aconteceu até agora.’
‘E quando disser?’
‘Talvez me consiga sentir como devo nesta altura.’
Olhei-me nos olhos. Resistiram a todos os ataques do tempo. Continuavam a ser meus. Viu-os a caírem nas profundezas de uma melancolia que cedo conheceram.
‘Então, o que é que queres saber?’ Perguntei-lhes.
Levantaram-se para me furarem de um lado ao outro.
‘És feliz?’
‘Foda-se… entras a matar.’
‘Hey! Tu é que pediste!’
‘Ok, ok… tens razão.’
‘Então?’ Olhava para mim na espectativa de que algo importante acontecesse, que me transformasse em algo capaz de provocar um evento decisivo neste lugar que não existe.
‘Não sei.’ Disse-lhe quando reuni coragem suficiente para o olhar outra vez nos olhos.
Não me mostrou desilusão. Já compreendia o que eu estava a sentir, apenas tentava ajustar a sua perceção ao facto de uma sensação daquelas poder perdurar por tanto tempo.
‘Estava à espera de que já soubesses responder a isso.’
Foi a primeira oportunidade que tive de o ajudar com alguma coisa, e aproveitei-a, porque ainda me lembro tão bem do que ele estava a sentir. O brilho das águas moveu-se de uma maneira que me sugeria algo.
‘Tu sabes responder. Aquele que és… poucas vezes serás tão feliz como és agora. Eu sei que soa estranho na face de outras coisas: não sabes dos teus pais; tiveste de fugir do teu quarto para dormires numa casa que nunca foi tua; caminhas à noite sem que ninguém saiba onde estás. Se pensares sobre isso, são boas razões para não estares feliz. Mas também sei que, apesar disso, sentes-te feliz. Apesar de teres sido abandonado, não estás sozinho e brincas com companhia sobre as ruínas de uma vida que já não é para ti. Não há como não te sentires feliz com os amigos que tens e com as aventuras que partilham. Aquilo que estás a viver é o epicentro da nossa vida. As histórias que estás a começar a contar… vamos contá-las para o resto da vida. Apenas não o consegues perceber porque estás mais preocupado em sentir do que em pensar. Mas não precisas de o perceber, ainda.’
Com o sorriso dele, algumas memórias sagradas reluziram nas águas diante de nós. Rapazes a meterem uma pequena bomba dentro de uma caixa de correio, a andarem de mota sem capacete, a entrarem em casas abandonadas à procura de demónios, a roubarem a planta do traficante da escola, a discutirem estratégias para conquistarem raparigas, a nadarem no mar até o sol se pôr. A ficarem acordados até tarde a contarem estas coisas e tantas outras. Esquecendo-se de que não era suposto serem felizes, mas que o eram na mesma.
‘Gostava mesmo de ter a certeza disto.’ Disse-me ele com um novo sorriso.
‘Não te preocupes, com o tempo virá. O que tens agora é melhor.’
Quando apreciou plenamente o que estava diante dele, voltou-se novamente para mim. Sabia quando tinha de se concentrar.
‘Consigo perceber o que estás a dizer, mas não consigo deixar de pensar que não vai ser sempre assim. Pois não?’
As memórias sagradas dissolveram-se novamente.
‘Estás a começar a alimentar a ilusão de que as razões para não estares feliz devem prevalecer perante as razões que tens para estar, apenas porque são mais. Vais adormecer a tua própria coragem enquanto te deixas convencer pelos sussurros do mundo de que há coisas que não são para ti e que vais ter de te habituar a merecer aquilo que não mereces. As razões que tens para não estares feliz estão prestes a multiplicarem-se. Não só isso, mas as coisas horríveis que conheceste até agora vão persistir e continuar a atormentar-te, mesmo enquanto outras te começam a morder o espírito.’
Perante este cenário, limitou-se a anuir. Não o fez como alguém que se resigna perante o seu destino – esse momento ainda estava para vir -, mas como alguém que reconhece o momento de enfrentar algo difícil, independentemente da sua vontade. E por assim o ver, doeu-me o coração quando tive de lhe dizer o resto.
‘Eu sei que achas que a dor não pode ser pior do que aquela que já te causaram. Mas vais conhecer nova dor. Com ela, vais aprender uma nova verdade: que a maior dor que sentes pode ser causada por ti próprio. Toda essa raiva que tens… é uma besta desleal. Tão depressa consome o que ordenas como se vira contra ti. Não te esqueças que o ódio é o isco da raiva. Esse ódio que tens pelo mundo que não te quis e por aqueles que te abandonaram, vai fazer ricochete e derramar-se sobre ti quando, inevitavelmente, te perguntares: será que não sou merecedor destas coisas? Vais ver-te como achas que és visto, alguém com todas as insuficiências que justificam existires como objeto de desprezo. Quando começares a odiar o teu espelho, a tua raiva vai partir-te em pedaços que vão parecer nunca mais se encaixar. Condenas-te a procurar em sítios que mal conheces pedaços que, no fundo, sabes que não vão encaixar, mas que estão ao teu alcance e parecem preencher mais facilmente os abismos da tua alma despedaçada. A tua cobardia vai deixar-te incapaz de olhar para ti ou de te atirares ao mundo. E então vais odiar-te mais… para teres mais raiva de ti… para te partires mais… para te paralisares… Vais perceber que és fraco, e que não há coisa pior para se ser.’
Lancei o meu braço à volta dele, porque sentia a dor que lhe estava a causar e porque lhe queria mostrar. Partilhei com ele a minha visão do rio para que pudesse ver a paisagem que se escondia por detrás das ondas que lhe negavam o futuro. O coração dele saltou em terror assim que viu as águas negras violentadas por ondas com dentes de espuma. O que mais o aterrou foi ver afugentada a esperança de que nunca mais as iria ver.
‘Vais ter de conhecer o inferno, outra vez, puto.’ Disse-lhe enquanto nas sombras das profundezas apareciam memórias que desejava ver esquecidas.
Reconheci nele o olhar que tantas vezes lancei ao horizonte em desafio, como se lá estivessem os olhos do mundo.
‘Então são estas as tuas águas?’ Perguntou-me com uma voz sem esperança.
‘Não… Já não.’ Apontei para as entranhas das águas negras de onde algo tentava emergir sem sucesso. Ainda era demasiado familiar e, por isso, ainda mais horrível. ‘Eram dele.’
‘Somos… nós?’ Perguntou-me entre o terror e o desespero.
‘Tu terás de ser. Eu já não sou.’
Como se tivesse sido acordado pela sugestão de uma oportunidade de novamente existir, uma mão rompeu as águas, apenas para ser triturada por ondas e se afundar, novamente. Pelo breve instante que conseguiu merecer a luz daquele lugar, contaminou o ar com todas as coisas que compunham a sua fraqueza.
‘O que é que lhe aconteceu?’ O seu coração já guardava misericórdia.
‘Afoguei-o.’ Disse-lhe. ‘Todos os dias o afogo. E terei de o fazer para sempre, ou todo este rio vai escurecer até não se distinguir do abismo onde flutua.’
De uma maneira que só ali era possível, ouvimos alguma coisa a gritar debaixo de água e sentimos as suas lágrimas a serem levadas pela corrente. Talvez porque estávamos mais próximos de nós do que alguma vez estivemos, deixámos que o vento dissesse as palavras que estavam à altura da compaixão pela morte de uma parte de nós.
‘Acho que já percebi porque é que não sabes se és feliz.’ Disse ele, quando o silêncio voltou.
‘Não, não percebes.’ Finalmente, estava na hora de lhe mostrar algo de bom. ‘Tinhas razão sobre uma coisa: a culpa é nossa. A escuridão que tinge estas águas não vem de nenhum lado senão de dentro de nós. É uma noite que deixamos cair sobre nós próprios pela fraqueza do nosso espírito. Porque nos esquecemos que, da mesma maneira que fizemos estas águas escuras, também, em tempos, as fizemos brilhar.’
Com o domínio que ia ganhando sobre aquele lugar, mostrei-lhe o tempo avançar. Uma única centelha de dourado a enfrentar o negro, até se incendiar e espalhar sobre aquelas águas, condenando a escuridão, novamente, às profundezas.
‘Fomos nós que fizemos isto?’
‘De onde te afogaste, irás emergir triunfal.’
‘Como? O que é que mudou?’
‘Nenhuma das coisas que querias que mudasse. Só nós. Sabes como?’ Com pensamentos familiares, trouxe-o de volta às águas da adolescência de onde o invoquei. ‘Por causa de ti. Por causa de todas as coisas que te atreveste a viver no teu tempo. Por causa de ti e dos nossos amigos. O eco dos vossos risos debaixo das trevas atravessou o tempo para fazer o meu coração bater outra vez. As aventuras que viveste tornaram-se nas memórias sagradas que me relembraram da história que queríamos contar. Fizeram-me perceber que não a estava a contar como tu querias… como eles queriam… Eles acreditaram nela primeiro do que nós. Mas tu sonhaste-a e escreveste as primeiras palavras daquilo que seria a nossa vida.’ Sem nunca o ter imaginado possível, abracei-o. ‘Obrigado por teres imaginado.’
Os braços dele apertaram-se à minha volta. O porquê de precisarmos um do outro tornava-se mais claro na minha mente.
‘Isso quer dizer que as coisas estão melhores para nós, agora?’ Perguntou-me, quando caminhamos para perto da luz das águas.
‘Como te disse, algumas continuam as mesmas. Outras estão diferentes. É difícil dizer o que é melhor.’
Ganhou coragem para me voltar a perguntar sobre o futuro.
‘Os nossos pais… Como é que eles estão?’
A pergunta surpreendeu-o mais a ele do que a mim.
‘O pai morreu. Cedo, como era de esperar.’
Teve a mesma reação que eu tive quando soube: a confirmação de uma indiferença há muito antecipada.
‘Ainda droga?’
‘Droga até ao fim, mas o que deu cabo do resto foi uma mota.’
‘GSXR?’
‘Ya.’
‘Acaba por fazer sentido.’ Disse ele como se tivesse recebido a explicação de uma história que até então não tinha percebido. ‘Como é que te sentiste?’ Perguntou-me como se estivesse a pedir um conselho.
‘Tu sabes como eu me senti. Como esperávamos. Não nos foi permitido mais.’ Pensei numa das últimas viagens que fiz a este lugar. ‘Mas também trouxe coisas inesperadas. Coisas que não vais compreender mesmo que te explique.’
‘E a mãe?’ Alguma coisa mais lhe pesou na voz quando perguntou. Ainda era um rapazinho adolescente a tentar escondê-lo com o seu orgulho.
‘A mãe refez-se. Tarde, mas agora é nossa mãe, outra vez, e isso é mais do que podíamos esperar. Faz isso apesar de a vida ter sido e continuar a ser difícil para ela.
Vi o orgulho dele abalar perante aquela possibilidade. Mas nem à frente dele próprio se deixou chorar. Eu sabia que ele tinha saudades dela, assim como percebia que havia luxos a que não se podia dar naquela altura.
‘Sabes, vai haver uma altura em que vais descobrir este lugar sozinho.’ Comecei a explicar-lhe. ‘Vais pagar um preço de entrada, porque o esplendor de recordar só se vai revelar quando for difícil de olhar para o presente. Mas este lugar não é apenas uma maneira de recordar. O que vês diante de ti não é apenas o passado. É uma vida a correr o seu percurso nas paisagens da eternidade. Aqui, a tua perspetiva de mero mortal com uma centelha do infinito, e a perspetiva do universo imortal com uma centelha do finito, unem-se para criarem esta realidade. Uma que é só tua. À medida que fores ganhando domínio sobre esta tua realidade, vais perceber que também as outras pessoas têm os seus rios de tempo a correrem em direção ao grande desconhecido. Cada um com as suas ondas, com a sua espuma, com os seus horizontes escondidos, com as suas águas negras e com as suas águas brilhantes. Perceberás que cada um está sujeito à fúria das ondas e à ruína que trazem consigo. Que também cada um pode deixar a noite cair sobre si e reduzir-se à fraqueza… tal como nos aconteceu. Ao perceberes isso, vais compreender que nem tudo o que os outros fizeram cair sobre ti foi maldade… vais aprender a perdoar.’
‘Então, conseguiste perdoar a mãe e o pai? Por tudo?’
‘Perdoei-os por tudo.’ Saiu-me com mais facilidade do que alguma vez pensei. Por um momento, a gravidade dos buracos negros pareceu enfraquecer e tudo ficou mais leve. ‘Mas não me perdoo a mim por todas as coisas que vieram da minha fraqueza. Tudo o que fiz por raiva… tudo o que não fiz por cobardia…’
‘Hey!’ Chamou-me ele, impedindo-me de voltar às memórias que queria esquecer. ‘Eu perdoo-te. Por tudo o que ainda vou fazer, por tudo o que ainda podes fazer. Vais ter sempre o meu perdão.’
Enquanto via a coragem nos olhos daquele menino que era capaz de perdoar males que ainda não compreendia, lembrei-me de alguém dizer: “deus ordenou-me que amasse o meu inimigo, então comecei a amar-me a mim próprio.”
‘Os nossos amigos… ainda estão connosco?’ Perguntou-me ele com esperança nos olhos.
Senti o meu sorriso brilhar.
‘Sim, todos eles, puto. Até hoje, continuam na nossa vida. Suportaram tudo connosco e não nos deixaram render. Nunca os vamos conseguir merecer. Devias de os ver… tenho a certeza de que ficarias orgulhoso, tal e qual como eu. São bons rapazes. De todas as coisas que até agora fizemos… acho que cuidar destas amizades foi a melhor.’
‘Sempre quis que eles estivessem bem. Eles merecem, depois de tudo.’
‘Sim, bem sabemos.’
Caminhávamos para mais perto do limite do futuro.
‘Então e… estás sozinho?’
Sabia a verdadeira pergunta que ele fazia.
‘Desculpa… mas não vai durar para sempre. E a culpa vai ser nossa.’
‘Mas ela é boa para nós, o que temos é real.’
‘Tens toda a razão, e na tua altura, tudo isso era verdade. É o teu amor de adolescência. Infelizmente, as coisas mudam. Tu e ela não vão ser sempre as mesmas pessoas. Vão deixar de ser adolescentes. Vão deixar de amar como adolescentes. Não me interpretes mal, ela vai estar lá para ti, durante o pior. Ninguém vos pode tirar isso. Mas o mal vai corroer, e nenhum de vocês se vai aperceber, até ser tarde demais.’
‘Não havia como salvar?’ É difícil para um rapazinho adolescente deixar morrer amor.
‘Não, puto. Lamento. Algumas coisas desfazem-se sem que ninguém possa fazer nada para além de contemplar os escombros. Não quer dizer que em tempos não tenhas tido a sorte de estar perante algo lindo. Só é difícil de recordar quando os pedaços estão espalhados pelo chão. Nunca ias adivinhar uma cascata através de uma gota desfeita numa rocha. Mas às vezes é o que resta. Por isso, aproveita.’
‘Sinto que o estou a fazer.’
‘Estás, sim. Em relação a tudo.’
Chegámos à muralha de água que me impedia de ver o futuro para além de hoje. Uma onda gigante ominosamente suspensa, sem deixar qualquer sugestão sobre quando iria cair sobre tudo. Como quem se atreve a fazer uma festa num grande monstro, senti com a minha mão a água que corria até ao céu dos buracos negros. Só consigo dizer que senti tempo, nada mais.
‘Estás pronto para continuar?’ Perguntou-me ele, seguindo o gesto, pois já tinha aprendido a ser destemido forçosamente.
‘É uma boa pergunta. Faz outra.’
‘Hum… deixa-me pensar… Ah! Já sei! Foda-se como é que ainda não me tinha lembrado! Afinal o que é que fazemos com essa idade? O que é que somos?’
O meu riso ecoou pela onda gigante acima.
‘Nunca na tua vida vais adivinhar.’
‘A banda teve sucesso?!’
‘Claro que não, caralho. Mas continua a tocar, aproveita.’
‘Foda-se… achava que eramos bons.’
‘Não disse o contrário, mas não foi por aí.’
‘Hum… tem alguma coisa a ver com gajas?’
‘Puto…’
‘Ok, desculpa…’
‘Como é que não perguntas se tá relacionado com o curso que vais tirar?’
‘Pfff… será que vou? Espera… nós vamos para a universidade? Mesmo? Vai dar?’
‘Ya, puto. Vai dar. Vai custar horrores, vai ser difícil e vai acontecer na pior altura. Mas vai dar. Vais para a universidade.’
‘Mas eu nem sei como é que aquilo funciona… Nunca vi aquilo à frente. Ainda nem pensei bem nisso sequer. Sei que vem a seguir, mas nem sobre isso tenho a certeza… Não sei se é para mim.’
‘E tudo isso vai pesar sobre ti, mas vais conseguir entrar.’
‘O único problema de entrar é o dinheiro, não são as notas… Mas também não me vale de nada entrar se não conseguir acabar…’
‘Puto.’ Pousei-lhe a mão no ombro para que ele tirasse o olhar do chão. ‘Tu vais acabar a universidade.’
‘Vou?’ Olhou para mim incrédulo.
‘Vais. Contra todas as probabilidades, contra tudo o que te oprime, contra tudo o que devia de ser, vais ser capaz.’
Cresceu-lhe um novo sorriso. Era orgulho por um futuro que ainda não conhecia, mas cuja imaginação lhe deixava o espírito provar o sabor.
‘Então o que é que vou ser? O que é que tu és?’
Respirei fundo antes de lhe dizer.
‘Vais ser professor universitário.’ Disse-lhe finalmente.
Perdi a conta às coisas que lhe passaram pela cara e, no fim, não consegui interpretar nenhuma delas, tal foi a sua velocidade.
‘Que puta de seca…’ Respondeu-me ele. ‘A sério?’
‘Deixa-te de merdas e pensa!’
‘Penso no quê? Que vou ser uma seca do caralho… A espetar seca a toda a gente… Dás aulas de quê, mesmo?’
‘Direito. Puto, espera…’
‘Foda-se, ainda por cima! Aquela merda toda que me mostraste para isto? Para ser professor de direito… um gajo que vive a fazer perder o tempo dos outros com coisas que não interessam a ninguém… Realmente, não admira que não saibas se és feliz, eu acho que já tenho a resposta para ti…’
‘Cala a puta da boca e ouve!’
‘É assim que falas para os teus alunos? Até já tens jeito para mandar calar as pessoas, a sério…’
‘Não, não é assim que falo para eles, porque gosto daquilo que faço.’
Finalmente, parou de deambular enquanto pensava em mais maneiras de me despedaçar. Consegui reconhecer novamente o que tinha na cara.
‘Gostas mesmo?’
‘Mais do que qualquer outra coisa que alguma vez tenha tido oportunidade de fazer.’
‘Porquê? Nós nunca tivemos respeito por professores… prenderam-nos durante anos naquelas salas para nos obrigarem a ouvi-los falar sobre nada…’
‘Tens a certeza de que nenhum mereceu o teu respeito? Eu sei que já tens memória disso.’
A sua postura confessou uma pequena derrota.
‘Sim… alguns foram bons para mim e para o pessoal.’
‘E porquê? Anda lá, eu sei que já sabes.’
‘Quiseram saber de nós.’
‘Pronto, é isso que eu quer ser, alguém que quer saber daqueles a quem ensina.’ Consegui que ele olhasse para mim outra vez, com curiosidade no lugar da desilusão. ‘Achas que percorri todo este caminho para me tornar em algo que desprezamos? Não, eu quero ser algo de que precisávamos. Quero ser bom para outros como não foram para mim.’
‘Um professor consegue fazer isso?’
‘Um bom professor consegue. Um que se lembra do que é não querer estar numa sala de aula porque se quer aprender alguma coisa que faça realmente sentido para nós. As coisas que não nos ensinam, mas de que tanto precisamos. Como nós precisámos… Porque não posso ser eu a ensiná-las depois de as ter aprendido? Talvez assim possa ser bom para alguém como queria que tivessem sido para mim. Posso ajudar alguém a ser melhor e poupar-lhes o sofrimento de descobrir tarde aquilo de que precisam agora.’
Nesta altura, a revolta já lhe tinha saído do corpo, permitindo-lhe relaxar e ouvir cada palavra com uma atenção afiada. Deixou os olhos passearem pelas paisagens do infinito enquanto pensava sobre todas estas coisas.
‘Dentro da história que contámos até agora… faz sentido.’
Eu sabia que ele ia perceber.
‘Faz sentido porque justifica a tragédia. Todas as coisas horríveis que nos caíram em cima aconteceram para que possamos emergir delas com algo de bom para partilhar. Nem que seja o conhecimento de como algo partido pode ser reconstruído e ser mais forte depois da queda.’ De repente, todo o rio se iluminou perante mim, como se, de alguma forma, tivesse conseguido falar na mesma linguagem que ele, mesmo sem a saber. As coisas estavam a começar a fazer sentido. ‘Partilhar o bem em que acreditamos não é uma tarefa fácil. Como podes partilhar algo que não tens? Algo que não construíste? Não basta querer ser, tenho de me fazer à altura do que quero e é isso que tenho feito. Já não deixo que os monstros venham atrás de mim; procuro-os e persigo-os até fazer dos seus restos troféus que me fazem mais forte. Não quero força para dominar o outro, mas para o ajudar a dominar-se a si. Tal como tivemos de fazer para conseguirmos fazer o tempo brilhar novamente.’
Pela primeira vez, vi-o olhar para mim como se não fosse eu.
‘Sabes, acho que era feliz a fazer isso. Ser professor… Visto dessa maneira, ya… pode ser fixe.’
‘Ainda é mais fixe quando vais de mota para a faculdade para dar aula.’ Pisquei-lhe o olho.
‘Não! Jura! Tens mota?’
‘Claro que sim, puto. Até parece que não querias!’
‘Sabes bem que sim! E vais com ela para as aulas?’
‘Yup.’
‘Ok, isso é fixe. Que mota é?
‘Uma Suzuki SV-650.’
‘Eia! Isso ainda anda! Mas podias arranjar uma de 1000cc…’
‘Dá-me tempo.’
Voltei-me novamente para a onda gigante. Já não parecia tão gigante. Jurava conseguir ver algumas coisas do outro lado. Algumas delas com formas familiares à minha imaginação.
‘Rui.’ Chamou-me. ‘Eu sei que a hora se aproxima. E já percebi o que precisas de mim.’ Por um momento, viu-o com um olho de cristal, orelhas de burro e metade do corpo chamuscado refeito por luz. ‘Por todas as coisas que conseguiste para nós… tenho orgulho em ti. Se estivesse onde estás, imaginava-me feliz.’
Com aquelas palavras, a onda gigante rebentou com um estrondo que encheu aquele lugar com a chuva da esperança, revelando-me um novo horizonte.
‘Já pensaste que, se calhar, já tivemos esta conversa? Que, de alguma maneira, vencemos o percurso implacável deste rio? Que me chamaste num sonho para te dizer todas estas coisas e que tudo isto é apenas aquilo que já tinhas imaginado apenas porque eu to disse?’
‘Se calhar, há coisas que ainda nenhum de nós imaginou.’
A água disse que estava na hora.
‘Obrigado por me ajudares.’ Disse-lhe enquanto voltávamos a entrar na água.
‘Não precisas de agradecer, ajudaste-te a ti próprio.’
Despedimo-nos com um abraço, imersos nas águas do rio do tempo, debaixo das aurelas dos buracos negros.
Ele nadou de volta às memórias sagradas.
Eu nadei na direção do horizonte do futuro.
Cheguei aos trinta. Sou eu que o afirmo imerso no rio do tempo, sem me encolher das ondas que perante mim se erguem. A história continua.