Rapaz, ‘tá tudo bem?
Rui Caria
Rapaz, ‘tá tudo bem? Já não te vejo cá fora há um tempo. ‘Tás pálido. Não é só de não apanhares sol, parece que te falta sangue. Realça o amarelo dos teus dentes. Andas a comer cigarros que nem caramelos. Quem não faz nada e fuma quando não tem o que fazer dá nisso. Podias pelo menos dormir; dá para te enterrar nas covas que tens cavadas nesses olhos. Mas tu enterras-te sozinho, não é?
Eu sei que tens a conversa ensaiada. Vais dizer-me que precisas de pensar no que queres, que estás a passar por um período de reflexão, que este trabalho é suficiente e não é assim tão mau, que precisas de descansar um bocado antes de seguir para a próxima fase, que estás a tentar aproveitar um bocado a vida… diz lá. Diz-me também que estás a preparar um projeto de que não podes falar ou conta-me mais sobre aquele de que já falaste, mas que não preparaste de maneira nenhuma. Há quanto tempo andas com essa conversa? Demasiado tempo.
Essa conversa nem é para mim; é para ti. Quem te dera falares contigo próprio. Podias fazer-te algumas perguntas, como aquelas que às vezes te fazem, e tentares responder sinceramente, em vez de leres desse teleponto interno que vais escrevendo com a tinta da preguiça. Podias virar-te para dentro, virar-te para ti, e perguntares: “rapaz, ‘tá tudo bem?”. Tenho a certeza de que ias receber uma resposta diferente daquela que normalmente ofereces.
Custa-te perguntar porque sabes que te vai custar ouvir. Custa-te olhar para ti, quanto mais falar. Não admira, esse corpo parece que foi comprado em segunda mão. O vento já te sopra para qualquer lado, qualquer dia leva-te de vez. Tiraste a ideia de deixar crescer a barba de um descampado abandonado. Também podias largar alguma água nesse cabelo, assim os ratos bebiam qualquer coisa. Isto se o teu cheiro não os matar antes - já não sei se é de ti ou da tua roupa. Deve ser de ti que vêm os 0,01% de bactérias que o sabão não mata.
É superficial? Está bem, fala-me das maravilhas que estão debaixo da superfície. Se me conseguires olhar nos olhos e dizeres alguma coisa que não tenhas ouvido num vídeo ou lido em fóruns e comentários. Dizes que gostas de aprender, é assim que justificas as horas que passas a ver e ouvir esses gajos. Pena que alguns deles não tenham gostado tanto de aprender como tu, talvez assim te ensinassem alguma coisa. Sabem mais do que nós? Quando finalmente conseguires tirar a carta de condução, se calhar vale a pena tirares a carta de pesados para conduzires esses camiões carregados de sabedoria.
Mas em cima de quem é que vais despejar isso tudo? Já ninguém te pode ouvir sem o efeito consolante de estupefacientes, a única coisa que torna tolerável a tua explicação sobre como estamos todos a ser controlados por detrás das sombras. Que conveniente que é esse cenário encenado pela tua paranoia… Só não consegues porque não te deixam, não é? Se não fosse o pessoal que controla o mundo, e o pessoal que controla o governo, e o pessoal que controla a economia, e aquele gajo que gozava contigo, e o aquele professor que disse eras burro, e aquele patrão que embirrou contigo …. Aí sim! O mundo era teu! Mas não te consegues controlar a ti próprio porque já há alguém a fazê-lo por ti.
Desculpa, esqueci-me que as raparigas também não percebem o quanto bom tu realmente és e preferem esses gajos que não valem nada. Exceto aquelas a quem pagas, claro. Ficas tão contente quando algumas delas leem o teu nome no chat e o dizem em voz alta para toda a gente ouvir do outro lado da webcam o quanto gostam de ti. É a única mensalidade que não te custa pagar porque é a única que te traz afeto. Por isso é que também não te importas de pagar às NPC’s do Tiktok para dizerem e fazerem coisas ridículas, porque pelo menos alguém faz o que queres. Não tens mais nenhuma maneira de mandar.
Tens razão, o dinheiro é teu e esforças-te muito para o ganhares. O esforço não é físico, o trabalho até se faz bem, tens de admitir. Assim como tens de admitir que o esforço não é mental, porque até consegues conversar com as pessoas com quem trabalhas. E mesmo assim não consegues segurar um trabalho durante mais do que uns meses sem toda a gente perceber que estavas na fila da frente quando os deuses estavam a oferecer a incompetência. Eu sei, esses trabalhos estão abaixo do teu nível, claro… O único esforço é o que o teu espírito faz quando, inevitavelmente, no meio de uma qualquer tarefa monótona e repetitiva te perguntas qual o propósito do que estás a fazer e rapidamente concluis que nada tem a ver com o que esperavas estar a fazer nesse momento da tua vida.
Mas passa? Não, só te distrais disso. Arranjas sempre tanto que ver e ouvir. Nesta altura podias ter um doutoramento honoris causa em entretenimento, depois de tantas horas investidas no acompanhamento religioso das temporadas mais recentes, e a ouvires com atenção as opiniões que podes ter sobre cada episódio e personagem. Ainda por cima nem jogas jogos de jeito, podias pelo menos ter essa qualidade. Não me venhas com a conversa de que o multiplayer é um pretexto para estares com os teus amigos. Se os teus amigos forem os miúdos de 12 anos que sabem todos os pormenores da vida sexual da tua mãe, se calhar não precisas de inimigos.
Alguma vez tiveste um amigo? Os abraços que se mandam por Whatsapp, não são abraços. E que gajos são esses que dizes serem teus amigos quando nunca te perguntaram: “Rapaz, tá tudo bem?”. Já ouvi a tua mãe dizer: “Ah, ele não está mal… tem trabalho! Arranjou alguma coisa, é melhor que nada. Não se mete em confusões, ganha o dele, não tem gastos porque vive cá em casa, e vai esperando que as coisas melhorem. É assim, é uma vida! Não está mal, podia ser pior!”.
Não me interessa o que a tua mãe diz. Para te ser sincero não me interessa o que mais ninguém diz. Quero saber de ti, da tua boca, do teu coração: rapaz, ‘tá tudo bem?
Eu sabia que não. Eu sei que não olhas para ti próprio porque não gostas do que vês. Eu sei que não falas contigo próprio porque sabes que és menos do que aquilo que esperavas ser. Eu sei que debaixo dessa tralha com que enches a cabeça há a memória de algum sonho sobre o qual deitas mais entulho todos os dias, porque não suportas que ele seja real, mas que não exista. Eu sei que sabes tão bem quanto eu. Sabes mais do que qualquer um à tua volta; não por serem poucos, mas porque se te aceitam assim é porque não te conhecem. Esse falso afeto é o lençol com que te tapas na cama da solidão. Não admira que passes frio.
Mas não é esse frio que te mantém acordado, pois não? No silêncio da noite a voz da consciência faz-se ouvir. Até dentro das paredes dessa pocilga a que chamas um quarto, de cuja verdadeira cor do chão já ninguém tem memória, e onde exibes a tua coleção de embalagens de comida pré-feita e lenços usados. Debaixo dessas costelas salientes alguma coisa ecoa: podias ser mais. Como odeias ouvir isso, e como te faz odiar-te a ti próprio, porque no eco reconheces a tua própria voz. Fazes pior, na ilusão de que de alguma maneira estás a magoar apenas a voz e não a ti próprio. Queres prová-la errada, provando-a cada vez mais certa.
Olha para mim quando estou a falar contigo, seu monte de nada.
Porque é que não te deixo em paz? Porque é que te estou a chatear? Porque é que te estou a dizer todas estas coisas? Porque me doi ver-te a seres nada. Sinto falta daquilo que podias ser. És como um irmão que nunca nasceu. Quero ouvir-te recontar os teus triunfos e as tuas vitórias sobre todas as coisas que queriam que fosses menos. Gostava de ver os teus olhos a verem mais céu do que chão. Olho para ti, mas não te vejo, só a carcaça que se ri com o som da mediocridade.
Claro que compreendo. Achas que és o único? Infelizmente, és cada vez mais comum. Vou contar-te um segredo: dentro de todos os rapazes há um igualzinho a ti, fraco. Muitos, ouvem-no assim que acordam, a pedir-lhes mais sono enquanto lhes garante que seja o que for que o dia promete pode esperar. Estão prestes a dizer algo que já deviam ter dito há muito tempo, e ele sossega-os, dizendo-lhes que não vale a pena e para se deixarem estar. São confrontados com uma oportunidade de serem corajosos, e ouvem-no dizer que é demasiado arriscado, que mais vale jogar pelo seguro.
A voz do rapaz fraco não nos abandona. Ouço o meu todos os dias, em tantas ocasiões diferentes. E sabes que mais? Houve alturas em que ele falava mais alto do que eu e decidia por mim. Nessas alturas, era eu a voz no fundo do poço da minha alma, a ver as sombras das más decisões no pouco de luz que me sobrava. Não és o único que sabe de cor a forma e o nome de cada pedra no fundo do poço.
Como? Vou contar-te outro segredo: dentro de cada rapaz – mesmo quando a voz do rapaz fraco fala alto – há a voz daquilo que ele pode ser. Procura o silêncio onde a consegues ouvir como a música da tua alma. Vai contar-te a sabedoria que precisas para te saberes e dar-te a força que precisas para te ergueres à altura daquilo que sabes que podes ser. A memória do sonho transforma-se em certeza do futuro. Olhas no espelho e vez algo por acabar em vez de algo acabado. Reconheces-te debaixo do entulho: és uma história por contar.
As coisas que vais fazer merecerão histórias e plantarão a dúvida sobre se realmente existes. Os inimigos desaparecem porque, afinal, ninguém te está a tentar controlar – porque ninguém consegue. Surpreendes-te agradavelmente com o facto de que podes ser útil e ajudar alguém e agradeces a força que tens para o fazer. Encontras mais uma razão para seres forte. Sem segundas intenções, sentes felicidade de conseguir fazer algo por alguém, pois sabes que a vida é difícil e que precisamos da força uns dos outros para superar a entropia que o universo nos impõe.
Olhas alguém nos olhos e vez essa guerra universal refletida na batalha interna entre sucumbir e perseverar, ser forte e ser fraco, ser medíocre e ser bom. Queres tentar conhecer o outro como te tentas conhecer a ti. Conheces a amizade profunda como uma aliança para enfrentar o mundo enquanto agradeces o mero facto de ele existir. Se calhar, até vais perguntar a alguém: rapaz ‘tá tudo bem? E quando te perguntarem a ti, vais poder responder: vai ficar.